Críticas: | Gosto da solidez e tradição do lugar. Bom serviço. para voltar apesar da conta pesada. Nosso menu:
Quando entramos pela porta do Coelho da Rocha, em Campo de Ourique, Lisboa, já sabemos ao que vamos: à reconciliação com a parte mais saudosa e estável do estômago. Empanturramo-nos de cozinha de fusão - ou seja, debicamo-la. Os nossos estômagos são, periodicamente, coisas delicadas; a nossa alma é, de vez em quando, aventureira como gostávamos de ser na realidade. Extasiamo-nos diante de uma torta de aipim com "tempura" oriental, apreciamos a originalidade, o risco, a fronteira entre o comestível e o irrepreensível. Os 'gourmets' são outra categoria: apenas apreciam o excelente, o melhor entre o melhor. Eu sou humano. Não tenho nada de 'gourmet' - a cozinha fez de mim um vadio que gosta de provar, de repetir, de evitar, de desobedecer, de apreciar a obediência. Defendo a anarquia que sabe bem, enquanto sabe bem. Sou pela desordem. Acho que cada livro de receitas é uma disposição, mais do que uma imposição, aprecio as receitas que variam, as distorções, as fugas, os sabores rebeldes que nunca se reuniram - e o conformismo também. Há tanto prazer na obediência à gramática e às suas regras como na desobediência e na desconstrução. Tanta beleza da irreverência como na repetição da norma. E há irreverência irritante, desqualificada, muito menos interessante do que a repetição da norma. É por isso a cozinha é sempre chamada à ordem. Empanturramo-nos (debicamos, aliás) de "cozinha original", a que está na moda para além da moda, muita dela própria para 'épater le bourgeois’, feita apenas para impressionar, para chamar a atenção (como as crianças). Mas depois queremos uma coisa sólida, reconciliadora, atenta, que nos reenvie à cozinha da nossa vida - à da nossa infância, à do nosso bairro, à do nosso sotaque. Queremos um daqueles restaurantes onde reconhecemos os cheiros (ah, até é pecado escrever "cheiros" - devíamos dizer "aromas"), onde reconhecemos um peixe inteiro, uma carne, um prato que antigamente se fazia em casa, um tabuleiro onde viaja um pargo saído do forno, uma batata solenemente arrancada à tortura da cozinha, mas identificável pelo seu ar tostado e pelo tom farinhento. Ou seja: somos exactamente isso - curiosos incorrigíveis e conservadores por natureza. E, por isso, quando entramos pela porta do Coelho da Rocha, em Campo de Ourique (mesmo bairro e mesmíssima rua onde viveu Fernando Pessoa, tinha de o escrever), já sabemos ao que vamos: à reconciliação com a parte mais saudosa e estável do estômago, aquela que parece que tem veludo, aconchegada, caseira, com saudades dos avós: salas com mesas perfeitas, cadeiras que se arrastam sem ruído, tons maduros, escurecidos pelos anos e pelo bom trato. Isto não vem só: este ambiente, com um serviço atento, tradicional, vem acompanhado de uma empada de caça (ah, perdiz) tostada, sedosa na sua capa; vem na companhia de um arroz de tomate (sedoso, verdadeiro) com gambas panadinhas ou com linguadinhos fritos (bem fritos, bem frescos), de peixe ao sal (com batatinhas, com grelos) ou de arroz de cabidela. Estes pratos podem não seduzir almas histriónicas, o que é bom - mas a verdade é que as almas histriónicas não comem e suspeito que os seus respectivos estômagos e paladares estejam danificados. Mas se não ficam tentados pelos lombinhos de javali, há o (não podia ser mais tradicional) cozido à portuguesa das quintas-feiras, um cozido completo, que nos deixa rendidos e suspirantes. E há um magnífico e nunca por de mais distinguido cabrito no forno que qualquer descrição repete as fórmulas do costume e se reduzem a isto: é magnífico e faz a cama para a encharcada de ovos, para o toucinho-do-céu (uma generosa mostra de colesterol do bom, como de costume), uma tarde de chocolate cremosa e a carta de digestivos igualmente conservadores e saborosos. Nestas noites que ainda não registam a suavidade requerida pela Primavera portuguesa, ao sair pela porta do Coelho da Rocha sente-se a necessidade de um agasalho - o tradicional "ventinho de Campo de Ourique" escapa-se por aquelas ruas desertas. Mas é só para o corpo; alma e estômago sentem-me reconfortados.
por Crónicas de Francisco José Viegas |
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