Título original: The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford
De: Andrew Dominik
Com: Brad Pitt, Mary-Louise Parker, Brooklynn Proulx, Casey Affleck
Género: Dra, Wes
Classificação: M/12
EUA, 2007, Cores, 160 min. (IMDB)
Um dos mais famosos bandidos americanos, muitas histórias foram escritas sobre o lendário Jesse James (Brad Pitt). Em 1881, Jesse tem 34 anos. Enquanto planeia o seu próximo assalto, o bandido continua a fazer frente aos inimigos que cobiçam não só a recompensa pela sua captura mas também a glória de o terem vencido. Mas a maior ameaça pode estar no seio do seu grupo de aliados.
Jesse pode não passar de um criminoso para aqueles que roubou e para as famílias dos que assassinou, mas ao mesmo tempo o bandido é também alvo de admiração: uma espécie de "Robin dos Bosques" que assaltava bancos e proprietários dos caminhos-de-ferro que exploravam os pobres agricultores; um soldado injustiçado que se vingava de quem lhe tinha destruído a vida, um espírito livre. Entre os seus admiradores estava Robert Ford (Casey Affleck), um jovem que sonhava com o dia em que cavalgaria ao lado do seu ídolo.
Quem terá sido realmente Jesse James? E quem foi Robert Ford, este jovem que, com apenas 19 anos, se tornou no cobarde que alvejou Jesse pelas costas, abatendo a lenda que dez estados não tinham conseguido capturar. O que terá acontecido nas horas que antecederam o tiroteio? Será que algum dia se saberá toda a verdade?in Público
Crítica:
A autoridade reencontrada de Brad Pitt
"Este é um tipo de filme complexo, lento, que não tem nada a ver com a forma como se fazem filmes hoje - tem mais a ver com os grandes filmes dos anos 70", diz ao Ípsilon Brad Pitt, actor e produtor de "O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford". Filmado em 2005, teve uma série de versões até estabilizar na versão definitiva de duas horas e quarenta minutos. "Na verdade", continua Brad, "eu gostava mesmo era da primeira versão, que tinha quatro horas. Mas os espectadores não iriam ter tolerância para ela...".
Ao longo de dois anos chegou a especular-se que "O Assassínio..." era um filme com problemas; que Pitt não reconhecia autoridade aos talentos do realizador Andrew Dominik; que nunca o filme veria a luz do dia. Mas viu, e o produtor ("Devo ter visto este filme mais vezes do que qualquer outro em toda a minha vida") está orgulhoso, e desmente qualquer braço de ferro entre ele o cineasta. Para todos os efeitos, então, imprima-se: "É um filme delicioso que precisou de pousar e respirar como um bom vinho. São assim as minhas histórias favoritas".
Antes de prosseguir, deve-se fazer ressaltar como Pitt aparece agora, aos 43 anos, mais à vontade na sua pele de vedeta e mais articulado na sua função de produtor. Como se tivesse encontrado uma direcção. Ele deixa entender que o facto de ser pai de quatro filhos tem alguma coisa a ver com o assunto: obriga-o a um maior exercício de concentração porque as janelas de trabalho estão abertas menos tempo. "Na verdade, tornei-me mais eficiente, isso satisfaz-me", reconhece. Angelina Jolie tem que ser chamada também para o caso: revelou o político Pitt que existe em Brad, ensinou-o a lidar com a imprensa, trouxe-o para causas humanitárias. (Foi ela que o disse: em casa só discutem quando discutem política.)
E assim, em Setembro de 2007, Brad Pitt deixou o Festival de Veneza com um certificado de garantia artística nas mãos (um prémio de interpretação). E, com o prestígio de "O Assassínio...", uma autoridade encontrada para as suas funções de produtor. "Meti-me na produção para poder fazer parte das histórias para as quais eu não seria indicado como actor. Meti-me nisso depois de ver como os projectos podem descarrilar e de pensar que talvez eu possa ajudar em algo, talvez possa dar algum apoio a realizadores com quem quero trabalhar. O nosso lema tem sido só grandes contadores de histórias e grandes histórias e isso tem sido muito compensador", diz o produtor de "Tróia", "Um Coração Poderoso" e dos futuros "Shantaram", de Mira Nair, com Johnny Depp (sobre a vida aventurosa de um heroinómano australiano, Gregory David Roberts) ou "The Time Traveler"s Wife", de Robert Schwentke, com Eric Bana.
Todo o homem mata aquilo que ama
Para já, a adaptação do romance de Ron Hansen, "O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford", é o ponto alto dos feitos de Pitt como produtor (além do facto de o prémio de interpretação lhe ter trazido um reconhecimento que é sempre ambicionado, mesmo quando se é o exemplar masculino mais sexy à face da terra). A história segue os últimos sete meses, em 1882, da vida de Jesse James, quando já era puro mito, quando já era impossível distinguir entre o assassino brutal e frio, o Robin Hood americano (defensor dos pobres) ou a "casualty" da Guerra Civil Americana que vingava a sua frustração e derrota. Assaltado pela paranóia (ou pelo desejo?) de que alguém o queria matar, James (Pitt) entrega-se ao seu destino, ao traidor Robert Ford (Casey Affleck), um dos membros do seu "gang". Como Jesus se entregou a Judas - sim, a história tem contornos crísticos. Ou como uma história de fascínio e contornos homoeróticos: a um dado momento, no livro e no filme, James pergunta a Ford, que era corroído por uma obsessão pelo seu ídolo: "Queres ser como eu ou queres ser eu?" O que quer que fosse, Ford matou James e foi como se o tivesse para si. "Each man kills the things he loves", portanto. Ford teve os seus 15 minutos de fama, e a fama foi-lhe, por sua vez, fatal.
Muito se falou em Veneza, depois de se ver Pitt no filme, tão hierático, tão sacrificialmente à espera do tiro de misericórdia, como uma meditação elegíaca da estrela Pitt sobre a sua própria fama - toques de Terrence Malick aqui e ali, de Peckinpah ou do Michael Cimino de "Heaven"s Gate"... "Não quero ir por aí, nem acho que seja essa a questão principal, embora compreenda perfeitamente a sensação de Jesse James de ter gente atrás dele para o apanhar. No meu caso, felizmente, ninguém me aponta armas", ri-se. "No filme, Jesse James é apanhado, obviamente, pela sua própria celebridade. Era alguém cansado do seu próprio mito de fora da lei. Robert Ford mostra outro lado da celebridade, com o seu desejo cego de fama sem realmente compreender as consequências."
Pitt considera o filme mais um drama psicológico do que um "western" - aliás, como outros títulos dos anos 1970 que chegaram vestidos com a capa de "western", quando o "western" já fora declarado morto, mas que, no fundo, apenas aproveitavam o valor simbólico de território mítico para melhor libertarem os fantasmas americanos. Foi ele que escolheu Andrew Dominik como realizador, depois de ter visto "Chopper", com Eric Banna, outra história de um homem que é procurado. "Quando vi "Chopper" fiquei siderado. Andrew entende muito bem aquilo que se passa nas profundezas do ser humano que faz com que as pessoas se comportem da forma que se comportam e de forma que nem sempre faz sentido. E, através do longo processo que foi fazer este filme, ele manteve-se fiel à sua visão."
Dominik corroboraria as declarações de Pitt: aquele que foi assistente de Mallick em "O Novo Mundo" disse, numa entrevista ao "Washington Post", que lhe interessaram menos as regras do "western" do que "as relações das personagens consigo mesmas. James é um homem que quer morrer, por isso está interessado em coisas de outro mundo. Sabe que não vai acabar bem, por isso a questão é: "Como é que uma pessoa lida com isso?" E esse era o aspecto essencial da personagem em que eu estava interessado. E quanto a Robert Ford, ele é uma pessoa ferida que imagina: se fosse Jesse James isso seria um escudo protector. Ele passou pelo pior que se possa imaginar - estava numa situação em que tinha de matar alguém pela qual tinha sentimentos conflituosos, de amor e de ódio". Como "vender" um filme assim, que é um "western" mas não é um "western", porque são apenas os fantasmas do género; que é um duelo freudiano mas também se instala, e se deleita, numa espécie de suspensão elegíaca...? "A minha decisão de pegar num filme não é calculada em função do seu potencial sucesso." Quem fala assim é o produtor Pitt. "O sucesso, na verdade, é um jogo de sorte. Eu não vou por aí, eu vou pela história, por aquilo que ela me diz, e, mais importante do que isso, pelas pessoas que me rodeiam. Não penso sequer em chegar a um público mais alargado. Eu tenho a crença profunda que todos os bons filmes hão-de encontrar um tempo e um lugar, se não for no fim-de-semana de estreia há-de ser mais tarde. Foi isso o que aconteceu a alguns dos meus filmes favoritos que talvez se possam aproximar deste em termos de ritmo - "Pat Garret & Billy the Kid" [Sam Peckinpah], "A Noite Fez-se para Amar" [Robert Altman], "Dias do Paraíso" [Terrence Malick]. Descobri esses filmes 10 ou 20 anos depois de eles terem sido estreados. A minha preocupação principal é a qualidade. É tão simples quanto isso."
Helen Barlow
América é o "middle name" de Jesse James
É uma história elementar, esta: o bom mata o mau e, no final, já não sabemos se o bom é mesmo bom e se o mau era mesmo mau (mas sabemos que tínhamos de o matar, como temos de matar o pai, para podermos ser alguém na vida).
Ron Hansen, o autor de "O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford" (edição Magnólia), prefere falar disto: do bem e do mal, nesta fase em que já não sabemos se o bom é Jesse James, o homem que encontramos no dia 7 de Setembro de 1881 sentado numa cadeira de baloiço a fumar um charuto e a planear um assalto enquanto a mulher limpa as mãos rosadas ao avental de algodão, e o mau é Bob Ford, o cobarde que o matou no dia 3 de Abril de 1882 porque não sabia se queria ser ele ou se queria ser como ele. Ron Hansen prefere falar disto do que alinhar em grandes teorias da conspiração sobre o regresso do "western" e sobre a sua permanência como paisagem, narrativa e referente moral de uma certa América mítica (o paraíso perdido tal como o "middle american" nunca o conheceu, a não ser dos filmes).
É o que lhe pedimos para fazer, quando lhe ligamos, depois do Natal, e ele atende: como escritor que frequenta o Velho Oeste americano (antes de "O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford", que publicou em 1983 e 24 anos depois deu um filme realizado por Andrew Dominik e produzido/protagonizado por Brad Pitt, escreveu "Desperadoes", uma espécie de "whatever happened" ao gangue dos Dalton), como explica o eterno retorno do "western" à ficção (e quando dizemos ficção queremos dizer imaginário) americana? Ele tem uma resposta elementar, primeiro. Diz que o regresso do "western" tem a ver com o facto de o grande público perceber que esse é o território natural das boas histórias ("muito boas histórias, histórias mais elementares"), agora que se fartou dos filmes de terror e dos "blockbusters" de acção, e que "a paisagem é mais bonita no Oeste". Mas tem uma resposta menos elementar, depois, quando diz que, "periodicamente", não é do Oeste que falamos quando falamos do Oeste: "Os filmes que John Ford faz a seguir à Segunda Guerra Mundial não são histórias de índios e cowboys. São "westerns", de facto, mas são "westerns" em que o que está em causa é restaurar uma comunidade, reparar os danos, e em que o elemento do fora-da-lei é utilizado metaforicamente em representação da Alemanha nazi, por exemplo".
O "western", hoje, pelo Iraque?
Era aqui que queríamos chegar: ao "western" como metáfora da recomposição da América depois de situações-limite como a II Guerra Mundial, o Vietname e, agora, o Iraque. Há alguma coisa no "western" que garante que tudo está bem quando acaba bem (mesmo quando não sabemos se o fora-da-lei é bom ou mau, sabemos que, no final, o Oeste foi ganho), nessa luta entre a civilização e a selvajaria - e também há alguma coisa no "western" que garante que essa luta nunca vai acabar, por muitos comboios que cheguem e por muitos fora-da-lei (podem chamar-se Jesse James e podem chamar-se Liberty Valance: o "middle name" deles é sempre América) que sejam assassinados com um tiro nas costas.
Ron Hansen, dissemos, prefere falar do bem e do mal (é um "middle american" do Nebraska e é um escritor católico) do que discutir a política do "western", um tema que, admitimos, pode ser um bocadinho o sexo dos anjos. "Sinceramente, não sei se o Iraque tem alguma coisa a ver com o sucesso recente do "western", que de facto é um fenómeno televisivo importante. Acho que as pessoas estão a evitar o tema do Iraque - preferem olhar para um mundo que já não existe do que olhar para o mundo contemporâneo. Os filmes que lidam com o Iraque não têm sido bem-sucedidos. As pessoas estão cansadas, querem ver outra coisa. E o "western" pode bem ser o tipo de entretenimento - elementar - que elas procuram", supõe.
Ele sabe o que procura no Oeste: "Nasci no Nebraska, que tem muitos elementos do Velho Oeste, e os grandes espaços ao ar livre [o "great wide open" que também parece inscrito no ADN americano] sempre me atraíram muito. Na minha escrita, procuro sempre meios de as pessoas saírem para o ar livre. Não estou muito confortável fechado, dentro de casa, com as minhas personagens - a maioria das coisas acontece lá fora". Também gosta de cavalos e também gosta de História - e a conquista do Oeste é aquilo que na América mais se aproxima de um mito fundador (é um país que, para todos os efeitos, praticamente só tem Pré-História e História moderna), por isso Ron Hansen não sabe bem em que prateleira arrumar "O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford". "Os "westerns" que escrevi são baseados em acontecimentos históricos e, portanto, também são romances históricos. São narrativas sobre pessoas reais que fizeram coisas reais - algumas bastante horríveis".
Nesse sentido, "O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford" é toda a verdade sobre uma história muito contada, mas também muito mal contada. Há mais realidade do que ficção no romance de Hansen, uma realidade minuciosamente descrita e enumerada, como num relatório, diz ele: "80 por cento do que escrevi é realidade. Se há um assalto, é porque houve um assalto. Se alguém morre, é porque morreu - e a data da morte é a data correcta. É óbvio que os diálogos são inventados [então Jesse James nunca perguntou a Robert Ford "tu queres ser eu ou queres ser como eu?"], e muito do material sobre o Bob Ford também é inventado. É uma personalidade que continua subdocumentada, não se sabe sequer se chegou a participar nalgum assalto com o gangue de Jesse James".
Ron Hansen põe Robert Ford no local de um dos crimes, o assalto ao expresso dos caminhos-de-ferro Chicago and Alton. É aí, na página 18, que o escritor começa a construir uma relação entre Robert Ford, "um jovem rapaz com uma cartola cinzenta e um casaco preto largueirão", e Jesse James, um fora-da-lei com um "aspecto tão temível como o do Rei Henrique VIII".
O facto e a lenda
6673 resultados se fizermos uma pesquisa de livros sobre Jesse James na Amazon e Ron Hansen ainda achou que faltava dizer alguma coisa. E faltava. "Faltava perceber a relação de Jesse James com o seu assassino. Há muitos livros sobre Jesse James, de facto. Mas as histórias que se contam andam sobretudo à volta dos assaltos que ele planeou, dos crimes que cometeu, das pessoas que matou (17, tanto quanto se sabe) - e depois, vindo do nada, aparece o Bob, e o Bob é o cobarde que o mata, fim. Eu sabia que havia uma história mais complicada - tinha de haver arredores mais complexos. O Jesse James praticamente entregou-se aos irmãos Ford: ou queria matar-se e foi um gesto suicida ou queria emocionar a América. Para mim essa "rendição" é Jesse James a atirar a moeda ao ar, como se fosse a última oportunidade que lhes dava de o matarem antes que ele os matasse. Ele era um fora-da-lei, gostava da adrenalina, de se pôr assim nas mãos do destino".
Entre Jesse James - o facto - e Jesse James - a lenda (e aqui, definitivamente, o facto tornou-se lenda) -, Ron Hansen não imprimiu nenhum dos dois. "Inverti a lenda sobre Jesse James: a lenda de que ele era um Robin dos Bosques americano, um fora-da-lei que roubava aos ricos para dar aos pobres. Isso nunca foi verdade. Mas imprimi uma lenda sobre Robert Ford, ao recusar a teoria de que matou Jesse James porque tinha medo que Jesse James o matasse e ao refazê-lo como uma pessoa encurralada numa esquina, a reagir e a tentar viver com dignidade, apesar de toda a América o tratar como um cobarde. A recusa dele em pedir desculpa por ter assassinado Jesse James, a recusa dele em transformar-se na pessoa que a América queria que ele fosse, mataram-no", explica. É aí que o encontramos dez anos depois da morte de Jesse James e dias antes da sua própria morte: nessa nota de rodapé da História americana (que é, ainda hoje, uma história da violência): "A cada ano que passava, desde 1882, Bob estava mais longe da História, mas, ainda assim, menções a Robert Ford surgiam periodicamente nos jornais do Colorado e do Missouri, em reportagens enojadas, sugerindo que era uma pena que o cobarde ainda andasse por aí a pavonear-se, apesar das duas ou três notícias falsas que surgiam em cada mês e que davam conta de que tinham cortado a garganta ao assassino de Jesse James numa ruela de Oklahoma ou que ele tinha morrido de tuberculose ou de pneumonia e que o tinham enterrado na vala comum.
Nenhuma das notícias que ele lia tinha o cuidado de informar a data e o local do seu nascimento, quem eram os seus pais e como foi criado; nunca faziam referência à Escola Moore, a Blue Cut, à mercearia, ao seu acordo com o governo; aparentemente, bastava dizer que Bob Ford era o homem que assassinou Jesse James, como se toda a sua existência pudesse ser contida num único acto de perfídia. Ele tinha a noção de que nunca seria perdoado, de que ninguém faria discursos, aliás, provavelmente, ninguém apareceria, sequer, no seu funeral, os correspondentes não viajariam até Creede, o seu crânio não seria cirurgicamente aberto nem frenologicamente examinado, as fotografias do seu corpo mergulhado em gelo não seriam vendidas nas drogarias, as pessoas não invadiriam as ruas sob uma chuva intensa para assistirem ao cortejo fúnebre de Bob Ford, não seriam escritas biografias dele, ninguém daria o seu nome aos filhos, ninguém pagaria vinte e cinco cêntimos para visitar os quartos da casa onde ele cresceu. Ele já não tinha grandes aspirações, agora no Colorado, como tinha tido no Missouri, mas uma, pelo menos, tinha: a de que Robert Newton Ford ficasse na História como mais do que o autor de um disparo no dia 3 de Abril de 1882", escreve Ron Hansen a poucas páginas do fim.
Até este livro, e até este filme, Robert Ford nunca foi mais do que isso: conhecemo-lo por ser o assassino de Jesse James (antes de abrir um "saloon", no Colorado, ganhou a vida a posar para fotografias como "o homem que matou Jesse James" e fazer dele próprio em espectáculos populares que nunca tiveram grande sucesso), como conhecemos Mark Chapman por ser o assassino de John Lennon e como conhecemos Lee Harvey Oswald por ser o assassino de John Kennedy (e Jack Ruby por ser o assassino de Lee Harvey Oswald). "É mais ou menos a mesma história, vezes sem conta", concorda Ron Hansen. É a história de um cobarde, como Jack Ruby. E a história de um homem que mata "the thing he loves", como Mark Chapman. "O que aconteceu a Bob Ford é aquilo que acontece a muitas pessoas quando são jovens: associam-se a alguém que admiram e que acabam por emular, mas depois percebem que têm de se ver livres dessa referência, porque não há espaço para os dois, ou porque a grande referência se transformou numa grande desilusão.
É uma história muito familiar", argumenta. Não tem de argumentar: gosta de Robert Ford como gosta de Judas (e é diácono, numa diocese da Califórnia). "O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford" é um "western" e é um romance histórico, mas também é uma reconstituição dessa traição original que vem na Bíblia (a Bíblia que Jesse James "abria sempre com grande alarido"), uma alegoria: "Sou católico, é verdade que usei esses elementos. O Jesse James era cristão, filho de um reverendo baptista, e isso dominava o vocabulário dele e a maneira como encarava a vida. Não queria tratá-lo como se trata um Messias, porque em quase todos os aspectos ele é exactamente o contrário, mas de facto Bob é uma espécie de Judas. Mais no sentido em que Judas também é uma personagem subdocumentada, vagamente referida em duas ou três passagens do Novo Testamento, e que mesmo assim toda a Humanidade trata como um traidor da pior espécie. No caso de Robert Ford, como no caso de Judas, não sabemos a história toda".
América, América
Uma história elementar em que os bons são maus e os maus são bons, precisamente, como nos melhores "westerns". Isso, e também um "statement" sobre o "star system" como cultura (e é tudo tão americano que até dói). Ron Hansen não quis ir atrás de Jesse James por estar fascinado com a personagem. Quis ir atrás de Jesse James por estar fascinado com o que acontece a uma figura quando ela se torna lendária, quando ela deixa de ser uma pessoa para passar a ser uma mitologia. "Tanto o meu romance como o filme tratam do que acontece quando mitificamos as pessoas, quando os elementos de idolatria entram na relação que um país tem com o seu mais famoso fora-da-lei. Escrevi-o como uma reflexão sobre a televisão, sobre a cultura das celebridades - e acho que foi isso que atraiu o Brad Pitt no livro. De tanto se escrever sobre ela, de tanto se falar sobre ela, parece que a pessoa real, a pessoa por trás do mito, deixa de existir", diz Hansen.
Que tipo de país escolhe um fora-da-lei como "local hero" é a questão que nós, os europeus, temos de colocar. Ele responde assim. "Os americanos tinham medo de Jesse James. Mas, quando ele morreu, passou a faltar alguma coisa na vida deles. Acho que há qualquer coisa nele que a América adora, como se adora uma "action figure" - uma "action figure" muito corajosa, como ele era de facto. Mas vejamos o Elvis, vejamos o James Dean, vejamos a Marilyn Monroe: esta é uma história peculiarmente americana sobre o que acontece a uma pessoa quando ela morre, e sobretudo quando ela morre cedo".
Talvez sejamos demasiado europeus para perceber os americanos que chamam Jesse aos filhos. Hansen é suficientemente americano para achar isso normal e anormal, ao mesmo tempo. "A mentalidade "cowboy" ainda é predominante na América. As pessoas podem nunca disparar a sua arma de fogo, mas têm orgulho em tê-la em casa. Conduzem as suas grandes carrinhas pelas cidades como se fossem tratar do gado. Ainda vivem como homens rudes e obrigados a vigiar a Fronteira e a marcar o território. E sou obrigado a dizer que sim, a violência ainda é um traço distintivo da América, mesmo nas cidades mais remotas. Não é surpreendente que o desporto mais popular nos EUA seja o desporto mais violento. A violência é muito reverenciada aqui".
Podemos olhar para a América dessa maneira ou doutra. "O Oeste é o melhor da América no sentido em que é um território em que tudo é possível, em que as pessoas podem reinventar-se. A América ainda é um país em que as pessoas podem recomeçar do zero, não sei se isso é possível na Europa - e a paisagem a céu aberto do Oeste, mais do que o Leste onde as pessoas se amontoam, é o sítio para isso. Não é por acaso que muitas pessoas se suicidam na Golden Gate Bridge, em São Francisco: chegar a São Francisco é chegar ao fim, chegar ao Oeste definitivo. As pessoas não aguentam a ideia de terem chegado até ali e de nada ter mudado na vida delas. O Oeste continua a ser a terra prometida. É o sítio onde o sol se põe - ir para Oeste também é seguir o sol". O sol ainda não se pôs, nem para a América nem para Jesse James ("Um produtor de Hollywood disse-me que nunca ninguém perdeu dinheiro com um filme sobre ele, e isso é parte do apelo"). Há séculos que andamos a tentar matá-los - mas, até agora, as notícias da morte deles têm sido bastante exageradas.
Inês Nadais
O homem que matou Jesse James
Já John Ford o mostrara nesse magistral "O Homem que Matou Liberty Valance" que, em 1962, pregara um dos primeiros pregos no suposto caixão do western: "quando a lenda é mais plausível que a verdade, escreva-se a lenda".
"O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford" não é outra coisa que não a prova prática desse adágio, encenando a "verdadeira história" por trás da balada do assassínio do fora-da-lei Jesse James, à queima-roupa e pelas costas, pelo seu acólito Robert Ford. E a "verdadeira história" é muito mais complexa do que a lenda - e, por isso, muito menos atraente, mas muito mais americana. Porque o filme do neo-zelandês Andrew Dominik, por trás da sua fachada de western crepuscular atmosfericamente fotografado (tirese o chapéu a Roger Deakins), é uma espécie de radiografia do sonho americano, da sua necessidade de heróis e de vilões.
Uma desmontagem minuciosa dos mitos que explica como é que nascem os monstros ao mesmo tempo que propõe uma sardónica meditação sobre os efeitos da celebridade, reforçada pela presença de Brad Pitt no papel de Jesse James.
As Pittas vão ficar razoavelmente perplexas com o que é, na prática, um filme de autor - o que apenas sublinha a necessidade de louvarmos Pitt por ter interpretado e produzido um objecto tão radicalmente alheio ao "mainstream" americano contemporâneo. Ninguém confundiria "O Assassínio de Jesse James..." com um veículo pensado para lucrar milhões de dólares - embora haja evidentemente "água no bico" no risco calculado de Pitt, feito com um olho no prestígio de ter um filme sério no currículo.
O prémio de melhor actor em Veneza já ninguém lho tira, embora tenha claramente premiado mais o seu estatuto de facilitador do filme e o comentário irónico sobre o estrelato, quando devia ser Casey Affleck - o fã desencantado transformado em assassino - a ter sido premiado pela sua performance assombrosa.
É que o Jesse James de Pitt já não é um pistoleiro, mas sim uma espécie de divo mefistofélico que começou a acreditar na sua própria lenda e exibe os comportamentos típicos e mercuriais do astro que se convenceu que o mundo gira à sua volta. E o filme desenha a trajectória de um fã (voltamos a dizê-lo: Affleck é assombroso) que começa pela idolatria acrítica para lentamente compreender, à medida que penetra para lá da fachada, que o seu ídolo tem pés de barro e é um ser humano tão cheio de falhas como ele.
De certa maneira, essa trajectória é também um fenómeno de vampirização - Ford alimenta-se da "fraqueza" de Jesse para ganhar a sua própria força, com o objectivo último de se substituir a Jesse como a "next big thing", a próxima lenda viva do Oeste. Mas nessa trajectória ecoa também uma miríade de referências - aos assassinos infames da história americana (de John Wilkes Booth a Lee Harvey Oswald), aos "celebrity stalkers" que perseguem figuras públicas (de Mark Chapman, que matou John Lennon, a John Hinckley, que perseguiu Jodie Foster), aos "reality shows" e "paparazzi" que intrudem nas vidas privadas.
E a vampirização encerra o círculo quando Ford se substitui verdadeiramente a Jesse como uma espécie de reverso da moeda, compreendendo que a fama que tanto quis atingir é uma faca de dois gumes, respondendo à pergunta que Jesse lhe faz a certa altura (e que resume todo o programa do filme): "queres ser como eu ou queres ser eu?".
Dissemos acima e repetimos aqui: só aparentemente "O Assassínio de Jesse James..." é um western, renegando a acção em favor de uma suspensão letárgica e distendida do tempo narrativo. Mas mesmo nessa subversão o filme de Dominik é um sucessor digno dos westerns revisionistas dos anos 70, do "Duelo na Poeira" de Peckinpah (1973) ao "Duelo no Missouri" de Arthur Penn (1976), com essa estranheza a ser amplificada pela sensação de "filme fora de tempo" que tem, ao recusar a velocidade em nome de uma lentidão literária e atmosférica.
Também por isso, este é um objecto que vai certamente dividir opiniões, desagradar profundamente àqueles que vão à espera de um filme mais convencional ou de um western mais tradicionalista. O mal será deles: mesmo que "O Assassínio de Jesse James..." não seja um filme perfeito (e não é), é um dos grandes filmes americanos dos últimos anos.
Jorge Mourinha
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