Saturday, 7 February 2009

O Envagelho segundo Jesus Cristo


De José Saramago
Caminho 1991

Muito interessante sobretudo para quem conheça um pouco o novo testamento. Alguns episódios são relatados cronológicamente trocados, outros são simples eventos relatados por terceiros empolados pelo boato, outros são descreditados por todos. Chega a ser diverido seguir a narrativa e aqui e ali surgir algo que conhecemos iluminado por outra luz, vestido de outras roupagens, totalmente humanizados e despojados de glória. O relato acompanha a história de Jesus na sua busca pessoal pelo seu propósito na vida e na sua tentativa final de ser desacreditado como louco de modo a poupar ao homem à calamidade do Cristianismo (com grande referência à sangrenta Santa Madre Igreja). Gostei.


É a obra mais polémica de José Saramago e aquela que, indirectamente, o levou a sair de Portugal e a refugiar-se na ilha espanhola de Lanzarote. Ficou para a história o desentendimento com o então subsecretário de estado da Cultura Sousa Lara, que considerou o livro ofensivo para a tradição católica portuguesa e o retirou da lista do Prémio Europeu de Literatura. Com um José destroçado por ter fugido e deixado as crianças de Belém nas mãos dos assassinos de Herodes; com uma Maria dobrada e descrita, logo no início do livro, em pleno acto de conhecer homem; com um Jesus temeroso, um Judas generoso, uma Madalena voluptuosa, um Deus vingativo e um Diabo simpático, não era de esperar outra reacção das almas mais sensíveis e mais devotas do catolicismo português. E verdadeiramente viperinas são as várias páginas onde o escritor português se entretém a descrever minuciosamente os nomes e a forma como morreram os mártires dos primeiros séculos do cristianismo. Assim se escreveram os heréticos Evangelhos segundo Saramago, para irritação de muitos e prazer de alguns. Como convém.

Extractos:
O filho de José e Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo.
A Inquisição é uma polícia e é um tribunal, por isso haverá de prender, julgar e condenar como fazem os tribunais e as polícias, Condenará a quê, Ao cárcere, ao degredo, à fogueira, À fogueira, dizes, Sim, vão morrer queimados, no futuro, milhares e milhares e milhares de homens e mulheres, De alguns já me tinhas falado antes, Esses foram lançados à fogueira por crerem em ti, os outros sê-lo-ão por duvidarem, Não é permitido duvidar de mim, Não, Mas nós podemos duvidar de que o Júpiter dos romanos seja deus, O único Deus sou eu, eu sou o Senhor, e tu és o meu Filho, Morrerão milhares, Centenas de milhares, Morrerão centenas de milhares de homens e mulheres, a terra encher-se-á de gritos de dor, de uivos e roncos de agonia, o fumo dos queimados cobrirá o sol, a gordura deles rechinará sobre as brasas, o cheiro agoniará, e tudo isto será por minha culpa, Não por tua culpa, por tua causa, Pai, afasta de mim este cálice, Que tu o bebas é a condição do meu poder e da tua glória, Não quero esta glória, Mas eu quero esse poder. O nevoeiro afastou-se para onde estivera antes, via-se uma pouca de água ao redor do barco, lisa e baça, sem uma ruga de vento ou uma agitação de barbatana passando. Então o Diabo disse, É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue
Crítica:
Toda apresentação de alguém a partir do nosso pensamento não se faz sem injustiças. Nesse sentido, apontarei alguns trechos do romance de ficção do escritor português José Saramago, “O evangelho segundo Jesus Cristo, que certamente eu não conseguiria dar uma devida apresentação sem cometer injustiças. Não há nada melhor que conhecer um autor pela sua própria obra, e mesmo assim não estaremos livres de cometer deturpações do seu pensamento, afinal, tomar conhecimento dos pensamentos de um autor é tomá-los sob o manto dos nossos pensamentos, de tal forma que nunca chegaremos ao sentido do autor senão em devidas proporções de proximidade.

Saramago, tomando a liberdade da criatividade que as palavras nos permitem, escreveu essa belíssima obra de ficção, contudo, parece ser possível darmos contornos de “realidade”, dependendo do ponto de vista do leitor. Em contrapartida, lembremo-nos de que para falar sobre a vida de Jesus, ou do personagem Jesus, perante uma cultura onde o cristianismo enquanto instituição se cristalizou há milênios, como bem sabemos, só é legitimada enquanto discurso reservado aos sacerdotes, em outras palavras, não se fala de Jesus Cristo enquanto “palavra da verdade” senão pela caduquice dos catedráticos da religião.

No meio religioso, vários tomaram a obra de Saramago sob a cegueira da fé, da ordem da Verdade e do sagrado, pariram uma interpretação mutilada e disforme, ou melhor, em forma com a moral cristã. É nesse sentido que parece ser o mais adequado compreendermos como foi a reação do público quando foi lançada a obra. Merece ainda ser tomado de nota, que a reação das massas não merece muito da nossa atenção senão a desconfiança.

Saramago apresenta-nos um Jesus humano como todos os outros, tão humano que nos admiração. Jesus é um homem que em sua época se destoa dos demais pela sua inteligência de questionar, ir além, seja de Deus ou do homem; a própria Maria, mãe de Jesus, não escapa da argúcia do filho, de tal modo que, devido aos conflitos entre eles, Jesus resolve partir sozinho em busca de suas respostas existenciais.

Eis que Deus aparece ao homem Jesus e lhe diz que é seu pai, eis então um Jesus mais repleto de questionamentos: que queres tu de mim? por que tem que ser assim? se tens tanto poder assim, por que queres tanto mal? - Não se surpreenda o leitor se perceber um Deus lacônico, um pai pouco interessado no filho.

Esse é só um ponto de partida de uma obra que tem a capacidade de nos fazer sentir dentro de todo o cenário cultural e social que envolvia a vida de Jesus Cristo, bem como suas dificuldades, seus anseios e suas dores. A riqueza dos detalhes com que Saramago consegue “mostrar” os cenários, os comportamentos, os personagens e toda atmosfera da época, pode fazer o leitor sentir os pregos rasgando as mãos e os calcanhares durante as crucificações. Ou o que sentirá os leitores, nos momentos iniciais da obra, quando Saramago narra os sacrifícios de bois, cordeiros e bezerros no Templo, local de oferenda de sangue ao Deus beberrão? Tanta crueza que Jesus se nega a fazer o que todos faziam.

Para além da ordem sagrada, cega em suas próprias verdades, Saramago nos mostra uma ficção, porém, muito além da ficção bíblica. Em “O evangelho segundo Jesus Cristo”, o homem Jesus Cristo é um personagem comum, por isso sentimo-nos que ali ele é “real”, em suas aventuras e dores pelo mundo de Jerusalém afora, trabalhará para o Diabo, desafiará Deus, tentará convencer a mãe de que aquilo que todos seguem não significa o derradeiro caminho, e o que diremos, dele Jesus, que conhecerá os prazeres da vida com a prostituta Magdala.

Por não ser real, a obra de Saramago torna mais real que a nefasta Bíblia. Abaixo, alguns trechos do livro, mantidos ao estilo de Saramago, deliciem-se:


Jesus durante uma discussão com a mãe que lhe pede para abandonar os pensamentos maus:

“(…) Ó minha mãe, os pensamentos são o que são, sombras que passam, e não são bons nem maus em si mesmos, só as acções é que contam, Louvado seja o Senhor que me deu um filho sábio, a mim que sou uma pobre ignorante, mas sempre te digo que essa não é a ciência de Deus, Também se aprende com o Diabo (…)”

O momento onde Deus, o Diabo e Jesus travam debates, em uma barca perdida, em meio a um nevoeiro de 40 dias é um dos mais belos do livro. Jesus, neste momento, faz uma série de questionamentos a Deus que até então só o tinha avisado que seu nome seria exaltado na Terra a partir da morte de Jesus. O Diabo também participa, pois sabe que o projeto divino é projeto de ambos (Deus e Diabo):

“(…) . Disse Jesus, Estou à espera, De quê, perguntou Deus, como se estivesse distraído, De que me digas quanto de morte e de sofrimento vai custar a tua vitória sobre os outros deuses, com quanto de sofrimento e de morte se pagarão as lutas que, em teu nome e no meu, os homens que em nós vão crer travarão uns contra os outros, Insistes em querer sabê-lo, insisto, Pois bem, edificar-se-á a assembleia de que te falei, mas os caboucos dela, para ficarem bem firmes, haverão de ser cavados na carne, e os seus alicerces compostos de um cimento de renúncias, lágrimas, dores, torturas, de todas as mortes imagináveis hoje e outras que só no futuro serão conhecidas, Finalmente, estás a ser claro e directo, continua, Para começar por quem tu conheces e amas, o pescador Simão, a quem chamarás Pedro, será, como tu, crucificado, mas de cabeça para baixo, crucificado também há-de ser André, numa cruz em forma de X, ao filho de Zebedeu, aquele que se chama Tiago, degolá-lo-ão, E João, e Maria de Magdala, Esses morrerão de sua natural morte, quando se lhes acabarem os dias naturais, mas outros amigos virás a ter, discípulos e apóstolos como os outros, que não escaparão aos suplícios, é o caso de um Filipe, amarrado à cruz e apedrejado até se lhe acabar a vida, um Bartolomeu, que será esfolado vivo, um Tomé, que matarão à lançada, um Mateus, que não me lembro agora de como morrerá, um outro Simão, serrado ao meio, um Judas, a golpes de maça, outro Tiago, lapidado, um Matias, degolado com acha-de-armas, e também Judas de Iscariote, mas desse virás tu a saber melhor do que eu, salvo a morte, por suas próprias mãos enforcado numa figueira, Todos eles vão ter de morrer por causa de ti, perguntou Jesus, Se pões a questão nesses termos, sim, todos morrerão por minha causa, E depois, Depois, meu filho, já to disse, será uma história interminável de ferro e de sangue, de fogo e de cinzas, um mar infinito de sofrimento e de lágrimas (…)”

(…) A Inquisição é uma polícia e é um tribunal, por isso haverá de prender, julgar e condenar como fazem os tribunais e as polícias, Condenará a quê, Ao cárcere, ao degredo, à fogueira, À fogueira, dizes, Sim, vão morrer queimados, no futuro, milhares e milhares e milhares de homens e mulheres, De alguns já me tinhas falado antes, Esses foram lançados à fogueira por crerem em ti, os outros sê-lo-ão por duvidarem, Não é permitido duvidar de mim, Não, Mas nós podemos duvidar de que o Júpiter dos romanos seja deus, O único Deus sou eu, eu sou o Senhor, e tu és o meu Filho, Morrerão milhares, Centenas de milhares, Morrerão centenas de milhares de homens e mulheres, a terra encher-se-á de gritos de dor, de uivos e roncos de agonia, o fumo dos queimados cobrirá o sol, a gordura deles rechinará sobre as brasas, o cheiro agoniará, e tudo isto será por minha culpa, Não por tua culpa, por tua causa, Pai, afasta de mim este cálice, Que tu o bebas é a condição do meu poder e da tua glória, Não quero esta glória, Mas eu quero esse poder. O nevoeiro afastou-se para onde estivera antes, via-se uma pouca de água ao redor do barco, lisa e baça, sem uma ruga de vento ou uma agitação de barbatana passando. Então o Diabo disse, É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue. (…)”

Jesus, em longa viagem que fazia, feriu-se o pé, na qual parou para pedir ajuda em uma cidadezinha. Conhece então Maria de Magdala, prostituta que cura Jesus, e este “cura” a Magdala, e ambos passarão a caminhar juntos. Porém, Magdala não oferece apenas seus dotes de hospitalidade:

(…) Depois, juntos, Jesus amparado, como fizera antes, ao ombro de Maria, esta prostituta de Magdala que o curou e o vai receber na sua cama, entraram em casa, na penumbra propícia de um quarto fresco e limpo. (…) Adornei a minha cama com cobertas, com colchas bordadas de linho do Egipto, perfumei o meu leito com mirra, aloés e cinamomo. Maria de Magdala conduziu Jesus até junto do forno, onde o chão era de ladrilhos de tijolo, e ali, recusando o auxílio dele, por suas mãos o despiu e lavou, às vezes tocando-lhe o corpo, aqui e aqui, e aqui, com as pontas dos dedos, beijando-o de leve no peito e nas ancas, de um lado e do outro. Estes roces delicados faziam estremecer Jesus, as unhas da mulher arrepiavam-no quando lhe percorriam a pele, Não tenhas medo, disse Maria de Magdala. Enxugou-o e levou-o pela mão até à cama, Deita-te, eu volto já. Fez correr um pano numa corda, novos rumores de águas se ouviram, depois uma pausa, o ar de repente tornou-se perfumado e Maria de Magdala apareceu, nua. Nu estava também Jesus, como ela o deixara, o rapaz pensou que assim é que devia estar certo, tapar o corpo que ela descobrira teria sido como uma ofensa. Maria parou -ao lado da cama, olhou-o com uma expressão que era, ao mesmo tempo, ardente e suave, e disse, És belo, mas para seres perfeito, tens de abrir os olhos. Hesitando, Jesus abriu-os, imediatamente os fechou, deslumbrado, tornou a abri-los e nesse instante soube o que em verdade queriam dizer aquelas palavras do rei Salomão, As curvas dos teus quadris são como jóias, o teu umbigo é uma taça arredondada, cheia de vinho perfumado, o teu ventre é um monte de trigo cercado de lírios, os teus dois seios são como dois filhinhos gémeos de uma gazela, mas soube-o ainda melhor, e definitivamente, quando Maria se deitou ao lado dele (…) Agora Maria de Magdala ensinara-lhe, Aprende o meu corpo, e repetia, mas doutra maneira, mudando-lhe uma palavra, Aprende o teu corpo, e ele aí o tinha, o seu corpo, tenso, duro, erecto, e sobre ele estava, nua e magnífica, Maria de Magdala, que dizia, Calma, não te preocupes, não te movas, deixa que eu trate de ti, então sentiu que uma parte do seu corpo, essa, se sumira no corpo dela, que um anel de fogo o rodeava, indo e vindo, que um estremecimento o sacudia por dentro, como um peixe agitando-se, e que de súbito se escapava gritando, impossível, não pode ser, os peixes não gritam, ele, sim, era ele quem gritava, ao mesmo tempo que Maria, gemendo, deixava descair o seu corpo sobre o dele, indo beber-lhe da boca o grito, num sôfrego e ansioso beijo que desencadeou no corpo de Jesus um segundo e interminável frémito. (…)


EternoRetorno

O Evangelho segundo Jesus Cristo não é um livro novo. Ao contrário. São transcorridos mais de 10 anos, após a sua primeira edição, em Portugal, em 1991, Editorial Caminho. Mas, tão-somente agora, tive a chance de ler mais esta publicação do português José Saramago, e mais, em português de Portugal. Não costumo resenhar livros antigos, mas não resisti. O sentimento de fascinação foi mais forte e venceu! Há tempos não visualizava um Cristo tão humano, tão imperfeito, e assim sendo, tão maravilhoso e próximo da perspectiva de que o ser humano é feito à imagem e à semelhança de Deus.



Verdade que, quando do seu lançamento, O Evangelho... foi considerado ofensivo para a Igreja Católica, a tal ponto que a “guerra” nada santa deflagrada entre a Igreja e o então subsecretário de Estado da Cultura, Sousa Lara, contra Saramago, estimulou o autor a se refugiar numa ilha da Espanha, Lanzarote, nas Ilhas Canárias, onde vive. O seu Cristo humanizado; a sua Virgem Maria receptiva ao amor carnal do esposo; o seu São José moído de remorsos por sua fuga covarde, deixando para trás as crianças pequeninas de Belém nas mãos do assassino Herodes; e a sua doce Maria Madalena causaram furor dentre os católicos ortodoxos, que não conseguiram enxergar a possibilidade de redimirmos, todos nós, as nossas falhas.



Nascido em Azinhaga, província de Ribatejo, em 1922, sem diploma universitário, por conta das dificuldades econômicas da família camponesa, José Saramago exerceu, ao longo da vida, uma série de ofícios ( serralheiro, mecânico, desenhista, funcionário público) até se aproximar das letras. A princípio, como editor. Depois, como tradutor e jornalista, lançando o seu primeiro romance ( Terra do Pecado), ainda em 1947, embora, somente em 1966, volte a publicar e até os dias de hoje, continue a fazê-lo.



Traduzido em quase todos os continentes e nas mais diferentes línguas, o premiado Saramago, detentor de láureas nacionais ( Prêmio Consagração Sociedade Portuguesa de Autores, 1995; Prêmio Camões, 1995, dentre muitas outras) e internacionais, como o Prêmio Internacional Literário Mondello e o Prêmio Literário Brancatti, ambos de 1992 e ambos pelo conjunto da obra, Saramago faz retumbante sucesso em países, afora a sua Espanha e o nosso Brasil: França, Cuba, Estados Unidos, Itália, Holanda, Alemanha, Romênia, Suécia, Finlândia, Rússia, Japão, Argentina, Colômbia e México são alguns exemplos.



Além do mais , transita em, praticamente, todas as esferas da literatura: poesias, crônicas, memórias de viagem, peças de teatro, diários ( em 1997, lançou os Cadernos de Lanzarote, cinco volumes), além de contos, e, sobretudo, de romances. Dentre estes, difícil reconhecer o melhor. Memorial do convento (adaptado como ópera pelo italiano Azio Corghi), foi o primeiro a lhe dar notoriedade, em 1982. Ensaio sobre a cegueira , 1995, é de beleza indescritível . O ano da morte de Ricardo Reis traz à tona uma Lisboa, em plena ditadura (1936), mas numa atmosfera de irrealidade habilmente construída, incluindo, dentre os personagens, o magnífico poeta Fernando Pessoa. Todos os nomes, de 1997, por sua vez, permite passeio por uma Lisboa irretorquível .



Se é tarefa complexa hierarquizar a obra de Saramago, é fácil reconhecer o seu livro mais polêmico: O Evangelhosegundo Jesus Cristo. Ele lhe deu o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998, embora, paradoxalmente, o desafeto Sousa Lara tenha, na ocasião, retirado o título da listagem do Prêmio Europeu de Literatura . É preciso lembrar que a proposta de Saramago não é de reescrever o Evangelho, mas si, um romance, cujo“mote” são acontecimentos fundamentais para o cristianismo. Há cenas de rara beleza. O sentimento de negligência de José, o seu enforcamento, e, sobretudo, o tormento que repassa ao filho ( também, filho de Deus), numa herança dolorosa e odiosa, em sonhos entrecortados de dores e de culpa, é descrito, de forma magistral, em trechos variados.



A descrição da madrugada é pura poesia: “[...] a hora que o crepúsculo matutino cobre de cinzento as cores do mundo [...] O sol ainda tarda a despontar, não há, por todos os espaços celestes, o mais lavado indício dos rubros tons do amanhecer, sequer uma pincelada leve de róseo ou de cereja mal madura [...] (p. 17). E o que dizer da delicadeza da cena em que Maria cumpre o seu“dever” de mulher casada, sob o olhar discreto de um Deus complacente?



Sem pronunciar palavra, José aproximou-se e afastou devagar o lençol que a cobria. Ela desviou os olhos, soergueu [...] a parte inferior da túnica [...] Abrira as pernas [...] fosse por inusitada indolência matinal ou pressentimento de mulher casada que conhece os seus deveres [...] Deus, que está em toda a parte, estava ali, mas, sendo aquilo que é, um puro espírito, não podia ver como a pele de um tocava a pele do outro, como a carne dele penetrou a carne dela, criadas umas e outras para isso mesmo [...] Em verdade há coisas que o próprio Deus não entende, embora as tivesse criado. Tendo pois saído para o pátio, Deus não pôde ouvir o som agônico, como um estertor, que saiu da boca do varão no instante da crise, e menos ainda o levíssimo gemido que a mulher não foi capaz de reprimir (p. 18-19).



O despertar da sexualidade de Jesus ao lado de Madalena é entremeado de frases de raras belezas. Primeiro, quando lamenta não ter ele lhe conhecido no auge da sua beleza de mulher, e Jesus responde: “Conheço-te na beleza desta hora”, deixando evidente a possibilidade de cada um viver o seu próprio momento. Depois, a confissão sobre a sua virgindade, quando ele diz: “ Não conheço mulher”.



Quaisquer que sejam as nossas crenças religiosas, não há dúvidas! O Evangelho... é uma obra-prima, recheada de passagens literariamente incríveis. É o caso da descrição da fuga de Herodes. É o diálogo, em pleno mar, entre os três: um Deus vingativo e consciente do preço a ser pago pela humanidade para que o seu poder ganhe força ; um Diabo simpático e, ao mesmo tempo, apoquentado por atuar , sempre , como contraponto à presença de Deus ; um Jesus maravilhosamente imperfeito!



Por fim, acredito: O Evangelho... é muito mais romance que ofensa. Talvez a opção de Saramago por um evangelho decorra da singeleza dos diálogos entre os vários personagens, da descrição estonteante de cenas simples, que se passam num tempo longínquo, e, principalmente, do farto uso de apólogos / fábulas / parábolas, à semelhança do que se vê nos evangelhos, estes sim, os quatro livros principais do Novo Testamento, perpetuados pela nossa Madre Igreja.

UmaCoisaeOutra

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