Wednesday, 6 February 2008

Sweeney Todd

Apesar de ser um musical, algo que abomino, gostei imenso do filme. O ambiente gore tão característico de Tim Burton tornam este musical aceitável. Johnny Depp e Tim Burton, mistura imbatível.

Título original: Sweeney Todd: The Demon Barber of Fleet Street
De: Tim Burton
Com: Johnny Depp, Helena Bonham Carter, Alan Rickman, Sacha Baron Cohen
Género: Mus, Thr
Classificação: M/12

EUA, 2007, Cores, 116 min. (IMDB)

Depp é Sweeney Todd, um barbeiro apaixonado que é injustamente condenado à prisão, nas galés, por força de um juiz que lhe cobiça a sua bela mulher. Mas Sweeney nunca esquecerá nem nunca perdoará. Quando regressa a Londres, para tentar reencontrar a mulher e a filha, descobre o trágico destino que tiveram após a sua prisão, Sweeney afia as suas navalhas, que a Senhora Lovett (Helena Bonham Carter), a mulher que faz as piores empadas de Londres, lhe guardou. Começa então a preparar a sua vingança, treinando as suas mãos e fazendo a barba a cavalheiros de que nunca mais se ouve falar... Tudo para vingar a mulher e recuperar a filha das mãos do pérfido juiz Turpin, que agora se quer casar com ela. Ao seu lado, a cúmplice Lovett, que aproveita para rentabilizar o negócio de forma diabólica com os crimes de Sweeney que ficará na memória de todos como o Terrível Barbeiro de Fleet Street in Público

Crítica:
Da tesoura à navalhada

É com algum espanto que se fazem as contas ao número de filmes em que Johnny Depp foi actor de Tim Burton. Na objectiva verdade dos factos são apenas seis, contando já com o "Sweeney Todd" que agora estreia nas salas portuguesas. Mas parecem - "parecem", ao observador fazendo fé apenas no imediatismo do instinto - muito mais. Tim Burton e Johnny Depp formam uma das parcerias criativas mais importantes no cinema americano das últimas duas décadas, e muito possivelmente a mais produtiva e entusiasmante parelha realizador/actor desse mesmo período (podemos lembrar-nos de outra, Scorsese/De Niro, mas o essencial desta colaboração está nas duas últimas décadas ou nas duas décadas anteriores?).

Certa vez em que lhe perguntaram pelas razões do sucesso da parceria, Tim Burton respondeu assim: "Johnny é o actor ideal: basta dar-lhe roupas e maquilhagens esquisitas que ele fica logo todo contente". Esta resposta só na aparência é uma "boutade"; sendo certo que é importantíssima a sua relação com o universo do desenho animado, e do desenhado animado clássico (a "escola Disney"), Burton encontrou em Depp um actor totalmente disponível (e particularmente dotado) para ser "remodelado" conforme as necessidades, para ser o primeiro alvo de uma, chamemos-lhe, "intervenção figurativa". Isso faz dele, de facto, o intérprete ideal de uma obra que, como a de Burton, se joga tantas vezes na fronteira entre o humano e a mera antropomorfia, homens e bonecos coexistindo, alegremente ou dramaticamente, nalguns casos no mesmo corpo. E se há um tipo de figura "burtoniana" (essa: meio-homem meio-boneco) de que Depp se tornou o veículo típico e ideal, tornando quase impensável a sua ausência, não é menos verdade que o próprio actor se habituou a dela guardar qualquer coisa que depois prolonga, ou projecta, noutros filmes e noutras personagens - o Jack Sparrow dos "Piratas das Caraíbas", por exemplo, resultado do encontro entre os maneirismos de Keith Richards e um fantoche desgovernado: questão de retórica pura e simples que não tem resolução possível, mas... Johnny Depp seria, hoje, "Johnny Depp", nas características e não apenas no estatuto, sem o encontro com Tim Burton?

Em "Sweeney Todd" Burton e Depp apropriaram-se totalmente da personagem homónima, o amargo e sanguinário barbeiro de Fleet Street. É uma personagem que entra inteiramente para a galeria conjunta, pouco importando, face a essa apropriação, que venha dum musical de Stephen Sondheim e, antes disso, dos "mitos urbanos" londrinos e da literatura popular inglesa do século XIX. Torna-se uma criatura de Burton e uma criatura de Depp. Tanto assim é que a rima mais evidente é com o ponto de partida da colaboração entre o realizador e o actor, "Eduardo Mãos de Tesoura" (1990). Física e figurativamente, Sweeney é um Eduardo mais velho (com uma madeixa branca no cabelo preto), mais triste e mais violento, que se completa quando tem nas mãos uma navalha de barbear. Das tesouras de Eduardo às navalhas de Sweeney, ou, com alguma liberdade poética, da lâmina à lâmina: aproveitamos esta circularidade para passar em revista os vários momentos da colaboração Burton/Depp, tentando ter em atenção que, no fundo, é a lâmina o importante.

"Made in heaven"

Como dissemos, começou em 1990, com "Eduardo Mãos de Tesoura". Tim Burton tinha só três longas-metragens no currículo, "Pee Wee"s Big Adventure", "Beetlejuice" e, seu primeiro filme de alto perfil, "Batman" (mas também, muito provavelmente, o mais impessoal de todos). Johnny Depp, em cinema, praticamente só tinha no currículo um punhado de papéis secundários, ainda que alguns deles em filmes conhecidos (como o primeiro "Pesadelo em Elm Street" e o "Platoon" de Oliver Stone). A popularidade que tinha, se assim se lhe pode chamar, vinha de uma série de TV, "21 Jump Street". O encontro de Depp e Burton em "Eduardo Mãos de Tesoura" foi da ordem do miraculoso, verdadeiramente "made in heaven". O filme tornou-se um "clássico moderno" do cinema americano de inspiração fabulosa, condensando referências e dívidas formativas, de Walt Disney ao cinema de terror, e impôs, com inédita limpidez, o universo e o olhar "de cineasta" de Burton. Com tesouras em vez de mãos Depp era um cruzamento entre Pinóquio e o monstro de Frankenstein, criatura imperfeita e inacabada, transportando juntamente com essa imperfeição e inacabamento uma melancolia e uma ingenuidade não menos "ontológicas".

Teríamos a tentação de dizer que, na colaboração seguinte entre os dois, as máscaras caiam e estávamos completamente entre humanos, ou entre humanos completos. O filme foi "Ed Wood" (1994), e oferecia a Depp a oportunidade de protagonizar um "biopic" (ou aparentado) do homem que foi encartado como "pior cineasta de todos os tempos", Edward D. Wood Jr., realizador de filmes célebres como o "Plan 9 From Outer Space". Mas a humanidade do Wood de Depp será assim tão completa? A sua vontade de ser integrado e de ser reconhecido, a necessidade de se fazer rodear de uma "troupe" de "freaks" no lugar onde outros têm uma família, não viriam estas coisas de uma humanidade em perda, "incompleta", se já não fisicamente pelo menos psicologicamente? E o esgar que Depp punha permanentemente na boca de Wood, um sorriso como que de uma felicidade forçada, "obrigatória", não seria ainda uma maneira de encenar a "máscara"? É verdade que os termos, por relação a "Eduardo", se invertiam, e que a primeira personagem era uma "criatura" tanto quanto Ed Wood (ou, outra vez, Edward, Eduardo...) era um "criador", mas não obstante, ou até mesmo por causa disso, o que Burton e Depp propunham no desenho dessa figura vinha ainda no balanço de um trabalho de "circuito" entre humanização e desumanização.

A infância como assombração

"Humanização" e "desumanização" ou, em vez disso, infância e idade adulta. Em certo sentido, não há nada mais monstruoso do que uma "criança grande", um adulto que se recusa a crescer, nem que o seu oposto, uma criança que já é um pequeno adulto. Isto é um tema burtoniano, que faz o essencial de um filme como "Pee Wee"s Big Adventure", a primeira longa do cineasta, imparável mergulho no grotesco, protagonizado pelo Pee Wee Herman de infeliz memória. O grotesco selvagem de "Pee Wee"s" Burton nunca o repetiu nos filmes com Johnny Depp, nem em quaisquer outros. Mas a infância como assombração, como algo que o adulto transporta como um peso que o puxa para trás, mais ou menos regressivamente, esse tema foi-se desvelando com subtileza. E pela primeira vez de maneira absolutamente clara em "Sleepy Hollow", filme baseado na história e nas personagens de Washington Irving que constituiu, em 1999, a terceira colaboração entre Burton e Depp.

Ichabod Crane, o protagonista, sofre de desmaios e alucinações, que se dão a ver em "flash-backs" relacionados com a sua infância. Como se o homem adulto avançasse num terreno armadilhado por traumas e recordações guardadas por razões incertas. Ichabod era, porventura, a mais séria (em sentido "realista") das personagens de Depp para Burton, e a sua profundidade psicológica era muito mais importante do que as questões figurativas relacionadas com a sua natureza. Mas seis anos mais tarde, em "Charlie e a Fábrica de Chocolate" (2005), quarto filme Burton/Depp, essas questões centrais na constituição de Ichabod praticamente se viravam do avesso. A absoluta seriedade de "Sleepy Hollow" fazia-se suceder por um ambiente de fantasia industrial, algures entre uma festa de Carnaval e uma viagem de comboio fantasma.

Depp dava corpo a Willy Wonka, industrial do chocolate, figura na fronteira entre a mais profunda misantropia e a mais perversa infantilidade. Possivelmente, a mais perturbante personagem que Depp fez para Burton, puxando ao máximo pelas cordas mais ambíguas, quer em termos de caracterização (até se falou numa variação sobre Michael Jackson...) quer no que toca aos modos da sua apreensão e reconhecimento pelo espectador. O facto de alguma coisa sobre a personagem ser parcialmente explicada (ou "explicada") através de "flash backs" oriundos da sua infância adensava, tanto quanto caricaturava, esse tipo de dimensão psicológica trazido de "Sleepy Hollow".

E no fundo, Depp voltava a instalar-se naquela obscura zona figurativa entre a "carne e osso" e a "plasticina", entre o homem e o boneco. Questão interessante: é mais "humano" o Willy Wonka de "Charlie..." ou Victor van Dort, o boneco a quem Depp deu voz em "Corpse Bride", filme de animação realizado nesse mesmo ano e que foi a quinta colaboração entre os dois? Respondendo ou não a essa pergunta, é muito fácil defender que Johnny Depp "está" em "Corpse Bride" tanto como noutros filmes - o boneco, de resto, foi decalcado da sua figura. Ter bonecos a representar actores não é muito diferente de ter actores a representar bonecos, são apenas duas maneiras diferentes de fazer ecoar as "questões de natureza", tão caras ao cinema de Burton.

E agora, "Sweeney Todd". O regresso às lâminas, numa mais que possível variação negra, soturna, quase claustrofóbica, sobre a personagem de Eduardo Mãos de Tesoura. "Sweeney" tem um passado e tem um desgosto, o seu coração que antes foi "puro" está agora turvado pela dor e pelo ódio. No universo poético das colaborações Burton/Depp, é porventura a primeira representação de uma ideia da "idade adulta", no que ela tem de mais triste, de mais solitário, de mais distanciado da infância. E há sangue, sangue como nunca se viu em Burton, a cobrir, na parte final, a cara de Depp: não há dúvida, aqui, que se trata de homens, não de bonecos.

Luís Miguel Oliveira

Há monstros no musical

A cada filme de Burton os fãs estão sempre à espera de uma novidade, um modo de, na extrema coerência de um universo que não se confunde com nenhum outro, avançar um passo mais, desenvolvendo o fantástico herdado do romance gótico de finais do século XIX, por via do maravilhoso do Romantismo Alemão, com tantas entidades mediadoras que enriquecem a sua obra, tais como reminiscências dos clássicos da Disney, do "Feiticeiro de Oz" ou do mundo menos complexo dos "comics"...

Alguma crítica recebeu de forma pouco entusiástica "Sweeney Todd", acusado de pouco inovar no contexto da "burtoniana" essencial. Antes de mais, é preciso levar em conta a origem teatral do material. As opções estéticas de permanecer "fiel" ao musical de Stephen Sondheim determinam que "Sweeney Todd" - adaptação do espectáculo estreado na Broadway em 1979 - tenha que ler-se neste contexto: Burton entendeu que tinha que deixar marcas fundamentais do texto, não ignorando a dimensão operática (embora nunca aprofundando em excesso a ligação com as "óperas" de Kurt Weill) e não sem explorar a radical modernidade da partitura, o que lhe permite transportar um texto teatral para a mobilidade fílmica de uma câmara que explora na perfeição as hipóteses do digital - em vertiginosos "travellings" sobre o cenário reminiscente do palco, mas renovado em cores soturnas que remetem para o imaginário vitoriano.

Este transporte de um "meio" para outro (Burton nunca cede à tentação de teatralizar) permite-lhe, inclusive, fazer com que Johnny Depp vocalize o "parlando" das renovações melódicas de Sondheim e dá a Helena Bonham-Carter, excelente no modo como sexualiza a personagem e como canta os resquícios de balada que atravessam a partitura, a possibilidade de cumprir as exigências vocais que "Sweeney Todd" exige.

O gosto pelo "gore"

Uma das questões essenciais que este musical levanta é o facto de, apesar das regras canónicas, tanto da Broadway, quanto de Hollywood, de associar mecanicamente Musical e Comédia (veja-se a vitória de Depp, nos Globos de Ouro, como melhor actor de Comédia ou Musical e de "Sweeney Todd" como melhor filme de Comédia ou Musical), é que tal associação não faz sentido. "Sweeney Todd" debruça-se sobre os malefícios da Revolução Industrial, sobre um sistema judicial corrupto e sobre memórias visuais e iconográficas de um tempo que incorpora o grande romance "realista" de Charles Dickens, bem como uma abundante literatura de cordel, repleta de crimes hediondos e exibições despudoradas de sangue derramado, arriscando um tema "impossível" para um musical centrado no crime sem remorsos e em personagens negativas. Estabelece com o público uma relação de intimidação sem tréguas, nem complacências. Não se hesita em convocar pedofilia, antropofagia, a monstruosidade instituída em regra de correcção da sociedade injusta que se retrata. Do ponto de vista musical, Sondheim faz corresponder o esfacelamento do número musical no todo. O herói, o barbeiro "serial-killer" (personagem criada por Len Cariou na Broadway), comanda a acção com a sua cúmplice Mrs. Lovett, mas não existe qualquer lógica que escape ao disparate das peripécias excessivas do "Grand Guignol". E não há na punição final qualquer moralidade tranquilizadora.

Mário Jorge Torres

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