Wednesday, 12 March 2008

Este país não é para velhos

Os Cohen estão de volta. Filme complicado mas marcante, não existem personagens tipo e no entanto todos reconhecíveis. As coisas são simplesmente como são, mesmo que fique um sentimento de injustiça latente. Grandes paisagens e ambientes de iconografia Americana. É um grande filme mas ainda leva algum tempo a digerir.

Título original: No country for old men
De: Ethan e Joel Coen
Com: Tommy Lee Jones, Javier Bardem, Josh Brolin
Género: Dra, Thr
Classificação: M/18

EUA, 2007, Cores, 123 min. (IMDB)

Baseado no romance homónimo de Cormac McCarthy, o premiado autor americano, "Este País Não é Para Velhos" é um hipnótico "thriller" dos irmãos Coen, os realizadores de "Fargo" e "Barton Fink". Nos dias de hoje, os ladrões de gado deram lugar a traficantes de droga e as cidades pequenas tornaram-se campos de batalha. Llewelyn Moss (Josh Brolin) descobre uma carrinha, rodeada por cadáveres, com um carregamento de heroína e dois milhões de dólares em dinheiro. Moss resolve ficar com o dinheiro e o seu acto desencadeia uma série de acontecimentos extremamente violentos, que nem mesmo a lei, na figura do velho e desiludido Xerife Bell (Tommy Lee Jones), consegue travar.
À medida que Moss procura fugir aos seus perseguidores, sobretudo a um misterioso homem (Javier Bardem) que atira uma moeda ao ar para decidir se poupa ou não a vida aos seus inimigos, o filme retrata de forma dramática temas tão antigos como a Bíblia e as manchetes sanguinárias dos jornais. "Este País Não é Para Velhos" foi nomeado para oito Óscares, vencendo quatro: melhor filme, melhor realizador, melhor actor secundário e melhor argumento adaptado. in Público

Crítica:
Por um punhado de dólares

Os irmãos Coen desde cedo partiram o universo dos seus espectadores ao meio, entre o culto incondicional e a aversão, nalguns casos militantemente exacerbada. Pendemos mais para o segundo grupo, o que em princípio nos torna insuspeitos para dizer que "Este País Não é Para Velhos" é o melhor filme saído da oficina dos dois irmãos desde o primeiro filme que realizaram, "Blood Simple", no já remoto ano de 1984.

É que, bem espremidas as contas, é o terceiro filme dos Coen de que os não-coenianos podem gostar, depois de "Fargo", com data de 1996. Dir-se-ia que há aqui um padrão: de doze em doze anos os Coen fazem um bom filme, e padrão por padrão também é verdade que "Este País Não é Para Velhos" não sendo um alienígena na filmografia dos irmãos, se relaciona sobretudo com esses dois filmes, "Blood Simple" e "Fargo".

Mesmo com esta matemática a situação comporta qualquer coisa de inesperado, e "Este País Não é Para Velhos" equivale quase a um golpe de rins. É que os Coen vinham de uma sequência de filmes particularmente descoroçoante, iniciada em 2000 - três filmes péssimos, "Irmão Onde Estás", "O Barbeiro" e o "remake" de "The Ladykillers" (capaz de fazer Alexander Mackendrick e Alec Guiness darem voltas no túmulo), e pelo meio um filme que, em comparação, era simpaticamente indolor, "Crueldade Intolerável".

Para esta renegeração criativa, mesmo que fugaz (a ver vamos), os Coen foram buscar inspiração a Cormac McCarthy. Mais do que uma boa história que eles fossem capazes de traduzir na sua habitual mecânica maneirista, o livro de McCarthy deulhes, diríamos, uma "substância" demasiado forte para que mesmo essa habitual mecânica maneirista fosse capaz de ignorar. Um peso e um sentido, um negrume e uma desolação, e um ponto de vista, não desprovido de ironia, sobre tudo isso.

No fundo de "Este País Não é Para Velhos" (é curioso: uma tradução quase literal do título original que no entanto evacua toda a ambiguidade do inglês "No Country for Old Men") agita-se o velho cinema dos Coen, a sua reverência, arrumada e copista, a modelos clássicos (o "noir", em particular), o gesto estilístico fechado sobre si próprio (há qualquer coisa de "calígrafo" no cinema dos Coen, e nesse sentido, sim, Tarantino não anda, diferenças qualitativas à parte, muito longe), a tendência para a estereotipação, ou deveríamos mesmo dizer "cartoonização", de personagens e referências da América sulista e rural (nos EUA já houve discussões sobre se os Coen "gostam" ou não do Sul; é que é complicado perceber). Isto está tudo a espreitar no fundo de "Este País não é Para Velhos", em modo "soft", mitigado, mas que o é ("soft" e mitigado) por aparecer dotado de uma "gravitas" que nos Coen é rara, a não ser, justamente, em filmes como "Blood Simple" e "Fargo". É essa "gravidade" que aguenta até as personagens mais problemáticas, como o Anton Chigurh de Javier Bardem - que se mantém sempre uma silhueta psicologicamente opaca, quase uma "nãopersonagem", quando uma nota em falso o transformaria num "boneco" (e os Coen vão até ao limite, dandolhe aquele cabelo à tijela e aqueles contra-picados a ampliar-lhe a presença nos enquadramentos).

A América de "Este País Não é Para Velhos" é reconhecível. É aquela que fascina também, por exemplo, Wim Wenders, e que funde a sua memória com a memória das suas imagens (isto é, fundamentalmente, o cinema). A paisagem natural, as estradas, os elementos urbanos tornados "mitológicos", como os motéis e os "diners", etc. No filme dos Coen, que colhe aí o essencial dos seus décors, tudo isso está no seu sítio certo. Se já não há lugar para "old men", o problema não tem a ver com o cenário mas, por assim dizer, com a peça que nele se representa.

O coração narrativo do filme é uma história de ganância e determinação sobre-humana, centrada numa mala de dinheiro que um homem (Josh Brolin) transporta e outro (Bardem) quer recuperar. A melhor sequência, brilhantemente filmada e montada (e já agora, sonorizada), a do motel e da conduta de ventilação, é com essas duas personagens. Mas o "espírito" do filme concentra-se mais numa terceira personagem, o xerife de Tommy Lee Jones, que entre o nostálgico e o perplexo vai passeando o seu nãoreconhecimento pelo rasto (sanguinolento) deixado pela passagem dos outros dois. Num certo sentido, é o xerife, o "old man", a personagem mais sofrida, e a que enforma o olhar sobre a acção.

E que, no final, condensa toda a ambiguidade desta história, confundindo nostalgia e sonho. É que isto, se calhar, foi sempre assim.

Luís Miguel Oliveira

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