Saturday, 29 March 2008

Andam faunos pelos bosques

de Aquilino Ribeiro (Wikipedia)
Círculo de Leitores 1983


Rubicundo, pesadão de farto, o estômago bem lastrado com lombo de vinha-de-alhos, padre Jesuíno saiu a espairecer para a varanda que a aragem da serra brandamente resfrescava.

Assim se inicia esta obra de Aquilino que acabei de ler. Não posso negar que em certas passagens a erudição me causou algum problema, mas no geral acho que esta é uma obra de uma prosa bela e que teve o condão de me transportar para esse Portugal já quase desparecido, rural e Beirão, para uma vida simples ao ritmo da mãe Terra. Gostei muito.

Aquilino Ribeiro intitulava-se a si mesmo como um obreiro das letras. Protagonista de uma vida intensamente vivida, tinha em Portugal a raiz da sua obra. E essa foi uma fidelidade nunca traída. Além do perfil do escritor, do homem e dos movimentos e figuras da sua época, os romances de Aquilino retratam o povo português no que ele ainda tem de mais vivo, nos seus erros e virtudes, nas suas grandezas e misérias, em toda a sua energia e autenticidade. Consciente de que a maior homenagem que lhe pode ser prestada pelos portugueses de hoje é a leitura apaixonada da sua obra.
A obra de Aquilino Ribeiro possui uma relação directa e contínua com a realidade telúrica e humana que lhe marcou a infância e a adolescência. Ele é um demiurgo. Por isso, os temas dominantes da sua ficção serão sempre a luta por parte dos esmagados na base da pirâmide social contra todas as opressões, a exaltação libertina do amor carnal, a integração do drama humano no concerto das forças naturais. E daí que não haja talvez em toda a literatura portuguesa quem, como ele, sinta e exprima o campo em todas as suas dimensões. Sem esquecer as violências, os medos, a luta terrível pela sobrevivência, mas sempre maravilhado ante a beleza ardente da natureza em todo o seu esplendor — deve-se, afinal, à sua pena a melhor bucólica da nossa literatura. Familiar dos animais e da magia dos bosques, é um deslumbrado não só perante os quadros que a natureza compõe, mas sobretudo perante o milagre da vida a suceder-se, a nascer, a vibrar... Como salienta Jorge de Sena "Das suas páginas irrompe uma lição de amor pela vida".

Extratos:
O que lá vai, lá vai! Ocupemo-nos da santa trincadeira, que o meu estômago está a gritar contra a cabeça que o governa! - proferiu o abade, ajeitando o corpanzil à margem da mesa opípara.

(...) A morte que leva os homens e a morte que leva os brutos, é sempre a mesma morte (...) Cheguei à conclusão que não há nada melhor que regozijar-se o homem com o que tem (...) Por isso eu exaltei a alegria, visto não ter o homem debaixo da rosa do sol outro bem que não seja comer, beber e folgar; é quanto o homem leva desta vida. Vai, pois, e come o teu pão com alegria e bebe com gosto o teu vinho; a Deus agradam as tuas obras. Goza a vida com a mulher que amas pelos poucos dias que hás-de andar neste mundo e que te foram contados pela tua vaidade (...)


Crítica:
Em "Andam Faunos pelos Bosques" deu-nos Aquilino uma obra erudita, polvilhada com sabedoria clássica, com reflexões ancestrais, nunca concluídas, sempre por resolver. Fala-nos do belo e do divino e, veladamente, de eugenia até. Mas também nos fala da relação entre o homem e o desconhecido, campo verde onde pastam as ovelhas da fé e onde, ao contrário do habitual, pastam também pastores.

Retrata magistralmente um conjunto de sacerdotes da douta igreja, sacudindo-os e analisando-lhes as vidas e a fé. São eles, os padres, que carregam o peso da narrativa. É através deles que Aquilino nos conta a história, passada nas serras da Beira e parcialmente na cidade de Viseu, de um conjunto de estranhas ocorrências.

Micas Olaia, chorosa camponesa, chegou à aldeia relatando o que lhe acontecera: fora desmoçada por alguém, ou algo, que irresistivelmente dela fez mulher. Não lhe batera, não a confinara, não a forçara. Antes a subjugara de forma inexplicável, nada conseguindo o vigilante Eu da pobre menina contra o outro Eu, aquele que, sempre escondido, determina acções e vidas. O caso seria banal não fora a profusão de quejandos episódios nas redondezas, em tempos próximos. A coisa evoluía e a misteriosa criatura deixou o seu rasto imoral pelas pedregosas veigas da serra.

A todos foi tocando o conjunto insólito de eventos. Organizaram-se montarias, acções concertadas entre os valentes aldeões e os sacerdotes, muito se rezou e muita batida pelos ermos se fez. Para nada encontrar ou evitar. Os acontecimentos repetiam-se escolhendo sempre as mais belas moças para vítimas. Todas sucumbiram entre a sensual, irresistível e telúrica força. Às feias, às desengraçadas, a essas só Deus queria.

Numa das montarias organizadas para dar caça à criatura, se apresenta Jirigodes, homem na meia e experiente idade, retornado em glória das Africas que, senhor de grandes qualidades másculas, se encarregou de liderar a operação. Jirigodes estava enamorado por uma belíssima catraia, cheia de sensuais visões da fé, que se decidiu entregar em sacrifício às garras da criatura, após insistente chamamento divino, em sonhos, de que deu conta ao pároco local. Assim o fez uma noite, num dos fortíssimos momentos desta obra, saindo de sua casa em sagrada e sensual missão. Regressada do sacrifício veio mudada: Chegara à Terra o Inefável, que viria plantar a sua semente pura nos ventres das mais belas mulheres. A humanidade apodrecida e desviada, decadente, cheia de aleijões e mostrengos, seria varrida pela onda que se iniciara agora, enchendo-a de beleza.

O tal Jirigodes, homem de grande orgulho e vaidade, não se deixa convencer e vai para a serra, esperar o causador de tamanha afronta. Leva Barnabé, o maluquinho, que se torna na segunda estrela de um dos mais brilhantes firmamentos da nossa literatura: A espera de Jirigodes. Sabe o leitor o desfecho do episódio pelas conversas dos padres que se reunirão, na última parte do livro, em Viseu. Aparece então a teoria clássica que ressuscita a imagem do fauno. Aparece depois a católica teoria demoníaca. O duelo entre as duas "escolas", defendidas cada qual por um punhado de padres, acaba saldado por uma intervenção de um outro padre num discurso absolutamente formidável que constitui uma das mais claras e racionais definições de fé.

É neste último ponto que a obra descola do simples romance para alturas estratosféricas, de ar rarefeito e propícias a toda a sorte de vertigens: a falta de oxigénio e a distância ao solo esmagarão o mais sólido dos leitores.

em Meia Livraria

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